Leo;
Gostei da sua experiência. Fotógrafos são um bicho interessante, que presta atenção no seu olho, ao contrário dos demais que acham tudo muito natural.
Permiti-me aqui colar uma crônica que escrevi há uns anos atrás. Divirtam-se, ou a usem para pegar no sono -risos
Vôo Cego
Ivan de Almeida
Publicado no Mal Crônico em 24 de março de 2003.
Tudo é tato. Tu-de-ta-to. O som é táctil. Ouvir é tato. Ver também, embora não pareça. Somos como amebas, explorando os arredores com pseudópodes. Para visualizar isso, imagine que você ficasse na cama, decúbito dorsal, movendo-se como se movem as dançarinas no balé-aquático, pernas pra lá, braços-antenas explorando tudo, e mesmo o olhar, vagante, seria parte dessa coreografia hídrica. Cada pseudópode encontraria alguma coisa e nesse encontro dela saberia. Tanto se dá, no entanto, que não fique deitado, mas ande, sente em cadeiras com rodinhas, dirija, troque as marchas. Tudetato assim mesmo.
Mas aí, ameba, fantasio conhecer uma realidade que É. Essas explorações pseudopódicas, por constantemente treinadas, por repetidas quase iguais, sempre me trazem o mesmo, encontram as mesmas coisas, e disso achar ser o real fixo é um pulo. É sempre no mesmo lugar onde se queda minha visão, é sempre da mesma forma que ouço, no meio do barulho, a campainha. Só às vezes é diferente, mas tão poucas vezes que quase não deixam rastro na memória. Uma ocasião, por exemplo, quieto e deitado no sofá, antenas acalmadas, ouvi meu coração batendo. Aí já é um tato interior, o pulsar sanguíneo nos tímpanos. Isso também pode ser percebido na visão, onde, se prestamos bastante atenção, conseguimos flagrar as oscilações da realidade a cada sístole ou diástole, o globo ocular pulsando e tudo tremendo ao ritmo cardíaco. De qualquer maneira, se o mundo é igual ou se movemos sempre do mesmo modo nossas antenas, é boa discussão para dia frio, garrafa de vinho encorpado e certa preguiça, falar pausado e interrompido por boas doses de silêncio -já então visualizo conversar sobre isso na serra, chovendo, como agora está aqui neste Rio de Janeiro, tomando uma espessa sopa bem quente de inhame com alho.
Não nos supomos às cegas ou tateando de forma mais ou menos arbitrária o haver que está lá fora. Imaginamo-nos “no controle”, senhores dos movimentos, das ações, dos reconhecimentos, certos e seguros de sabermos distinguir cada coisa, e que cada coisa sempre é ela mesma. Isso não é bem assim, deve ser dito. Certa vez um solzinho de fim de tarde iluminava uma poltrona azul na minha sala –em outra sala, de outro lugar onde morei-, e eu estava sentado, olhando para ela. Então, percebi uma mancha molhada no estofado. Nada acontecera que o justificasse. Não chovera, ninguém derramara água, aliás, eu estava sozinho e não havia ninguém que o pudesse ter feito. Observei a nódoa. Intrigou-me. Olhei e olhei em busca daquela água responsável pela mancha escura no azul do tecido. Não deveria estar ali, mas estava.
Não levantei para verificar logo. Indolente, sonolento, permaneci sentado, meio jogado, hipnotizado por uma umidade que não deveria haver. Quanto tempo? Não sei, talvez três, talvez cinco ou sete minutos, talvez mais. Deu para pensar no assunto. Levantei-me por fim. Passei a mão na almofada. Seca. O escuro era sombra e não molhado. Uma folha de uma planta (lembro-me de um bambu, mas não acredito que tenha sido, pois afinal o bambu produz sombras fáceis de reconhecer, as lâminas pontiagudas da projeção das folhas). Enganara-me. Sentei-me novamente e já não via o molhado, via a sombra. O que “É” havia mudado. Fora úmido alguma vez? Depois passara a ser sombra? Talvez, mas…, e se eu não me levantasse? Se o telefone tocasse e me distraísse, outro fato se interpusesse e eu esquecesse a almofada? Seria úmida ou seca? Seria sombra?
E há campos nos quais o tatear sequer nos dá ilusão de segurança. Família, amigos, conhecidos, próximos. Como sentem, como reagem? Se penso conhecer a Realidade da mesa da sala, mesmo filosofando não sabê-la de verdade, é certo que sei muito bem o quão pouco conheço dos outros humanos. Entre eles, vôo cego. Entre eles, fantasias e imaginação. Entre eles, emoções.