melancolia
pra quem não viu ainda: melancolia é simplesmente IMPRESSIONANTE. o filme de lars von trier, aquele sobre o asteroide que vai destruir o planeta no dia de um casamento parece, à primeira vista, de um roteiro quase banal.
não é. porque lars von trier é gênio - e permeia sua visão apocalíptica com imagens e tintas de desesperança absolutamente reais, atuais, urgentes até. entendê-lo em sua plenitude é uma tarefa ousada, desafiadora, que deve ter deixado muita gente por aí tensa :)… melancolia não é um filme sobre o inferno para a terra como um todo, mas sobre o inferno que habita em cada um de nós.
é preciso vê-lo exatamente com esses olhos - buscar suas mensagens subliminares, suas impressões de entrelinha - tudo que ele diz, sem dizê-lo. do contrário, corre-se o risco de ficar com a impressão superficial de que se trata de mais um blockbuster tipo “armaggedon”, dessa feita com algum apuro estético, “ajeitado” por cenas em super-slow e recursos de filmagem e fotografia mais afeitos ao cinema de arte que ao de entretenimento.
o filme inicia com uma camêra lentíssima em fotogramas que mal se movem, como fossem pinturas, num prólogo sem diálogos que dura os exatos 10min do único som que toca – o ato final belíssimo e imponente da ópera tristão e isolda, de wagner, prenunciando o que virá… depois, a atmosfera onírica da festa e do castelo, que contrasta com a sensação de eterna opressão, quase irrespirável, de kirsten dunst… adiante, os caminhos opostos que as 2 irmãs percorrem: dunst, que vai se casar, sai da fragilidade, da insegurança, da inquietação para uma madura, resignada e tranquila aceitação do fim; e sua irmã, que tinha uma vida estável e confortável, com a iminência do apocalipse se vê (ou já era, desde sempre?) perdida, desesperada, insegura, frágil…
como a realidade imensa se esborrachando na nossa cara, lars von trier inunda o filme com uma fotografia colossal: o balé de belíssimas imagens do início; a câmera no jantar que passeia na mão, como se um convidado fosse (e é); a família e os gêneros; os poderes e as classes; a falsa pompa, o mundo das aparências, a agenda da felicidade de claire, tudo que encobre a podridão de dentro; o carro enorme que não cabe nas ruas; a sombra dupla no jardim; as inúmeras alegorias da solidão (que somos, senão e sempre, algo além de sós?)…
são muitas imagens inquietantes… tudo remete não ao drama cósmico, não ao destino planetário, mas à dimensão metafísica deste, ou por outra, ao drama individual, ao drama das personagens, ao drama que é meu, seu e do mundo atual. absolutamente NENHUMA alusão ao pânico coletivo, só a forma como a mente e a vida de 3 ou 4 pessoas reagem a uma finitude anunciada - o apocalipse funciona como um pretexto pra tratar diferentes visões de como lidamos com nossa vida e nossa morte.
mas é tb, e sobretudo, um filme sobre nosso tempo e nossos dias - metáfora onde o capitalismo naufraga, países ricos e estáveis prenunciam sua derrocada inevitável e um futuro sombrio de abismo social, de indiferença, de “cada um por si” parece ser o destino que entregaremos a nós mesmos e a nossos filhos. dias em que o individualismo, o consumismo e o vazio fútil das pessoas se torna cada vez mais o padrão, e não o oposto.
e digo mais: toda a polêmica anti-semita que ofuscou melancolia em cannes, tirando-o da competição pela patrulha do politicamente correto, ao invés de diminuir a obra-prima de von trier, complementou-a agindo como fosse, paradoxalmente, a mensagem de uma parábola ficcional. os burros, idiotas, imbecis de cannes (ou seriam alguns dos judeus que financiam Hollywood desde sempre?) não percebem que TODA a obra de von trier é um grito contra o totalitarismo, contra a repressão, contra o senso-comum, e por extensão, contra o nazismo e o fascismo.
duvido que “árvore da vida”, que ganhou a seleção oficial, sequer chegue aos pés de melancolia. não vi, mas posso apostar nisso… definitivamente, melancolia alça von trier não só à dimensão dos maiores cineastas vivos (como woody allen, tarantino, os coen, almodovar, iñarritu e gus von sant), mas coloca-o desde já, pra mim, a despeito da parca meia dúzia de filmes que fez, no mesmo patamar do maior e profícuo gênio do cinema que os países nórdicos produziram: o sueco bergman.
ao se comunicar com o asteroide, kirsten dunst recebe dele a mensagem: “a humanidade é má”. não importa o que ela pensasse, quisesse ou fizesse, a essência primordial da consciência, dela própria e de todos, é perversa (rousseau puro!). a ÚNICA faculdade que difere homens de animais, ou seja, a liberdade de se distanciar do programa natural e fazer o mal, é ao mesmo tempo o motivo porque evoluímos de macacos e a razão porque tudo se acabará.
“a humanidade é má”… ele, o asteroide alienígena, não é outra coisa senão a própria humanidade. o fim de tudo. sim, e muito apropriado.
abs,
angelo