Um mundo para além da imagem - Jean Duvignaud

Arrumando meu arquivo de impressos encontrei esse artigo que pode interessar. Trata-se de um artigo de poucas linhas, mas que levanta uma reflexão maior sobre a questão da imagem e representação humana.


Um mundo para além da imagem

Jean Duvignaud

A fotografia, a pintura ou o cinema ultrapassam a realidade comum para apresentá-la como uma reveleção transposta

As palavras desgastam-se quando mais são aviltadas: assim ocorre com a palavra “imagem”, que perde o seu sentido, dita em colóquios, discursos mais ou menos científicos, debates, polêmicas. Esquece-se que esta palavra esta carregada de uma história - história dos costumes, das sensibilidades, das crenças - e que questiona essa parte da existência onde a espécie humana pesquisa, encontrar-se ou se perde.

E, talvez, convém fazer um pequeno catálogo, rápido, com os múltiplos usos ou práticas desta imagem, para então podermos ver com um pouco mais de claridade.

De início, o mais simples… A imagem que as nações fazem de si e das outras, e que, seguidamente são tomadas como verdades nos estudos políticos ou nas especulações do mercado. Eis, então, o Francês, com sua boina basca, uma “baguette” de pão nos braços, amante da gastronomia e das brincadeiras libertinas. Ou o Brasileiro sacudindo-se em um perpétuo “samba”, dançado sob coqueiros ensolarados.

Quando e como se formaram esses estereótipos, esses clichês, essas “mitologias” teria dito Roland Barthes. Perniciosa ainda é esta influência, quando se apoderam das mentalidades de uma Europa que prepara a sua unificação, e mais ainda quando levantam muros de racismo entre as diferentes culturas.

Vem em seguida as imagens que fazemos dos outros: aqui, elas dependem do lugar que nós ocupamos na hierarquia social, o papel que desempenhamos na “encenação da vida cotidiana”, e, às vezes, os fantasmas de nossas relações íntimas. Estas associadas ao pensamento freudiano: os costumes reais são encobertos de tudo que conduz nossa aventura psicológica pessoal.

Uma ocasião de dilaceramento, por vezes, dolorosa, pois que se misturam as fantasias do inconsciente e a dura realidade. Nós procuramos responder ao “olhar dos outros”, quando nós pressentimos como nós não nos parecemos ao que se espera de nós, o casal infernal descrito por Jean-Paul Sartre.

Temos, ainda, as imagens da representação fictiva: aquelas da religião, da arte. Elas estão lá, inscritas na cerâmica, na pedra, no papel, na madeira, na tela: elas designam Deus, os deuses, as cenas da vida, os rituais de iniciação, as festas, as batalhas, as caças, a paisagem.

São as figurações budistas na Ásia, os afrescos de Ajanta, na Índia, os mosaicos de Bizâncio, a estaturária helênica, egípcia, cristã: a arte de pintar e a representação das cerimônias sagradas ou profanas da tradição italiana, flamenga, alemã, francesa. O que são essas imagens para nós e o que somos para elas? Nós vivemos no “museu imaginário” com estampas, iluminuras, os traços sobre o vidro até as iluminações fulgurantes que se dizem abstratas de Mach ou de Klee. Nosso olho, e por conseqüência nossa vida, não fizeram sua aprendizagem através dessas imagens?

Enfim, porque a tecnologia as suscitou, temos as imagens de reprodução industrial, tal como falava Walter Benjamim: fotografia, cinema, televisão povoam a existência com uma nebulosa insistente. Eis, então, um mundo que superpõe-se ao mundo. Diria-se duas esferas, cujos movimentos diferem - aqueles do terra-a-terra e da duração sensível, privada, do caleidoscópio dos acontecimentos que, até agora, nos eram desconhecidos. Eis que somos os contemporâneos da existência planetária, tal como se percebe nas ficções que se exprimem por verossímeis ou as visões arranjadas ou cheia de truques que passam por verdadeiras. Sim, mas o que tudo isto tem a ver com a imagem?

A imagem é uma banal cópia? A imagem é inocente? Há a alguns anos, Sartre lembrava que toda imagem era um projeto, que visava um sentido além dela mesma e de sua materialidade. O homem é, sem dúvida, a única espécie que representa a si mesma e que representa os animais de seu ambiente e, sobretudo, dá forma ao invisível.

Em nenhum lugar, a sociedade se reduz a sua única representação, ainda menos aos limites que sofre. “A vida, dizia o jovem Lukacs, é uma anarquia do claro e escuro: nada nela se completa totalmente e jamais alguma coisa chega ao seu termo”. E, justamente, porque "nunca alguma coisa é vivida totalmente e perfeitamente até o fim, mais ou menos desajeitadamente, mais ou menos genialmente, os homens tentam, parece, acabar esse mundo inacabado por uma forma, uma forma visível que os justifica existir.

A imagem é esta forma, cujo processo ultrapassa o simples fato de ser: a abela constrói uma colméia, onde ela se aloja, e mesma coisa, a formiga faz o seu habitat que sobrevive as gerações presentes. O homem faz de si mesmo imagens múltiplas, diferentes que não são um asilo, mas respondem a uma tarefa infinita, incansávelmente renovável.

A imagem é mais que a imagem: ela projeta o ser para além do que ele é. Compreende-se que a representação das formas humanas foram objeto de forte debate, que os místicos chegaram a uma discussão do homem com um Deus absoluto, invisível, fora de toda conotação material. Basta lembrar que no fim do primeiro milênio europeu, uma imperatriz de Bizâncio, Irene, convocou um concílio, em Nicéia, com a finalidade de decidir se podia ou não representar a figuração de Deus? Que os monges dos conventos mediterrâneos, cuja única fortuna vinha da representação das imagens santas tiveram um papel importante nesse debate e no seu resultado, sem o qual, provavelmente, a arte de pintar e de esculpir não teriam emergido na Europa.

Não convém distinguir entre a adoração ao ser absoluto, sem intercessor, e a veneração que poderia suscitar a imagem de Cristo, deambulando, nas colinas, que foram aquelas pintadas em Siena, Florença, por meio de artistas com Fra Angelico, Giotto? Além disso, a China budista sugeria os metamorfoses do mundo através de rolos que lançavam ao olhar do amador, as florestas, a rios e seus habitantes?

Mas a imagem é também essa incitação que sugere a escritura ou a narrativa: com os seus meios próprios, a relação de fatos ou de eventos inventa a imagem com palavras. Não palavras que se lê, silenciosamente, em um gabinete, mas de palavras e frases, enunciadas por algum clérigo ou baladino - aventuras de Aquiles, de Ulisses ou de Simbad.

O ouvido engendraria imagens comparáveis aquelas da vista? O que nos vem pelos sons não estaria carregado demais de emoção do que nós descobrimos pelo plano fixo da figuração desenhada, esculpida ou pintada? Os gregos, mas também os chineses, os japoneses, os coreanos, aliaram o som e a vista por meio teatro.

Teatro em grego significa o que faz ver. Fazer ver os pesados manequins de atores mascarados e fantasiados que salmodiavam um texto. De onde vem o sentido? Do lento movimento dos personagens em cena ou do que eles diziam e o que se escutava?

Isto não quer dizer que o que nós vemos em imagem imóvel não tem o mesmo sentido que a imagem acompanhada de som e palavra? A imagem só chama todos os fantasmas e a voz que fala reestabelece uma verossimilhança, por vezes, enganadora. O que é, então, a representação plástica que não fala? Não foi assim que a pintura tornou-se “cosi mentale”, uma linguagem do espírito? E o que é a imagem de “si”, que constrói o que se chama o “eu”, a pessoa?

Com uma grande perspicácia, Lacan pensava que a criança descobria a sua identidade rindo, quando se via em um espelho. Os braços, as pernas, os olhos tomavam a forma de uma súbida iluminação. Sim, mas o que se passa nas sociedades que não dispõem de espelho? Um espelho de metal batido, essas figurações vagas, antes da invenção, em Veneza, desta camada de mercúrio e de areia, que nós dá um reflexo da vida, por vezes, mais intenso e analítico que nosso olhar.

Não é de admirar esta conjugação de magia e espelho acabou por ser uma das únicas que restitui uma inquieta imagem do duplo. J. P. Vernant nota que, na Grécia antiga, ela foi reservada para o uso dos deuses. Na Ásia, tanto quanto no Oriente ou na Europa, o esboço do dublo, por sua vez, fascina e aterroriza, como o pássaro de Minerva, a coruja.

continua…

continuação…

Ora, quem tem razão em relação a representação de sua própria imagem? As tumbas egípcias e, na sua maior parte, as mediterrâneas, fazem figurar os omortos, como se a morte fosse a ocasião de devolver o rosto aos homens e às mulheres. Ou bem, trata-se de transposição exaltada e faliciosa de um personagem dotado de poder e de prestígio. É necessário certa presença para gozar socialmente esse direto ao retrato.

Os comparsas de quadros sacros ou profanos não têm o direito ao nome, ao “eu”. Convém que um rei, um príncipe, um papa, ou então, um notável, gozasse, só, desse privilégio de ser representado. Só eles se impunham como pessoas particulares, pois dispunham dos meios para reproduzir suas imagens.

Uma imagem sempre envolvida de insignas do poder, da glória ou de um prestígio adquirido. Molière se fez retratar como um pobre personagem de tragédia (o que foi para ele um fracasso), o Rei, ao contrário, está carregado de ornamentos da potência e do respeito que inspiram. Os burgueses notáveis dos Países-Baixos pdem a Rembrandt que os pinte no exercício de suas funções. Sabe-se que isto nem sempre agradou e que o pintor nem sempre ganhou a partida contra a idéia que seus modelos entendiam dar de si mesmos. Mas antes do século 18 europeu, “qualquer homem” (com exceção dos artistas e de sua família) tiveram direito à representação do seu rosto?

Foi preciso esperar uma revolução tecnológica, aquela da invenção da fotografia para que o “homem sem qualidades” usufruísse de sua representação individual. E, sem dúvida, não no tempo de Nadar, mas mais tarde com a aparição dessa máquina maravilhosa, a Kodak, um nome que Cendrars queria dar a um de seus poemas.

Seria interessante fazer uma pesquisa para saber em que momento - e antes da popularização da Kodak - os homens e as mulheres se fotografaram. Cada família dispõe desses retratos tirados à saída da caserna, de cenas de casamento, de crianças nas suas almofadas, às vezes, de mortos. Antes de restituir todos os “instantâneos” da vida, a fotografia se liga aos atos sociais fundamentais. A partir de que época começou o direto individual da imagem?

Não uma cópia - Barthes tem razão - mas uma análise, uma revelação do ser que o retrato, sempre transposto, não poderia suportar. Ninguém examinou verdadeiramente como a vida psicológica, a sociedade, a literatura foram modificadas com essa restituição. E, talvez, esta revelação do “eu” em imagem resulta de sua imobilidade…

Um dos erros da ideologia “realista”, a socialista ou não, foi a de acreditar que a cópia da realidade poderia dispor da mesma forma de atração psicológica que a ação inventada: a própria história exige essa transmutação, quer se tratasse de Abel Gance ou de Fellini. O cinema foi bem sucedido no milagre de inventar um mundo do qual damos mais crédito que a nossa vida cotidiana, e pela qual a imagem de nosso “eu” ultrapassa seus limites para entrar em um lugar possível ou, por algumas horas, de que nossos desejos se liberal do recalque social.

Fonte: JB - Caderno Idéias/Ensaios - 25/11/90


Desculpem-me os erros, não revisei a digitação.
Dessa vez, fui mais econômica e grifei apenas algumas perguntas do ensaio.

Muito interessante esse artigo, Kika. Faz pensar em muitas coisas. E deu saudade das coisas boas que os jornais tinham “antigamente”, como o caderno “Idéias” do JB e o caderno “Letras” da Folha de S. Paulo.

Destaco uma passagem que me remeteu, entre outras coisas, a um trecho de uma carta do Baudelaire à sua mãe (de 1865), citada pelo Dubois no livro “O ato fotográfico”.

O trecho é o seguinte: “Eu gostaria muito de ter o teu retrato. É uma idéia que se apoderou de mim. Existe um fotógrafo excelente no Harvre. Mas temo que isso não seja possível nesse momento. Eu teria de estar presente. Tu não entendes disso, e todos os fotógrafos, mesmo excelentes tem manias ridículas: consideram uma boa imagem a imagem em que todas as verrugas, todas as rugas, todos os defeitos, todas as trivialidades do rosto tornam-se muito visíveis, muito exageradas. Quanto mais a imagem for dura, mais ficam satisfeitos. Ademais, gostaria que o rosto tivesse pelo menos a dimensão de uma ou duas polegadas. Só em Paris há quem saiba fazer o que desejo, ou seja, um retrato exato, mas com o flou de um desenho. Enfim, vamos pensar nisso, não é?”

Não estaria a preocupação do Baudelaire relacionada exatamente com a intuição de uma certa “revelação do eu” que ele considerava inadequada, talvez até indigna?

Me lembrei também da Diane Arbus, que acreditava que ao pedir aos seus “personagens exóticos” que adotassem a pose que achassem mais conveniente para serem fotografados os estava protegendo e permitindo que tivessem algum controle sobre o “eu” que seria fixado/imobilizado na imagem fotográfica. Esse ponto leva a uma longa discussão sobre o que seria mais verdadeiro: a foto posada ou o instantâneo que pega o fotografado desprevinido, e que acabaria fixando uma imagem que ele próprio desconhece (daí o desconforto que sentimos muitas vezes diante de fotografias que nos mostram em posições e/ou caretas de que não nos imaginávamos capazes).

Ainda tem o maravilhoso conto do Ítalo Calvino chamado “As aventuras de um fotógrafo” (do livro "Amores Difíceis). O personagem principal, que no início da história odeia fotografia - mas que acaba se rendendo à “moda” - lá pelas tantas está diante do seguinte problema: quer retratar a essência de sua amada e acaba se convencendo de que única forma de fazê-lo seria fotografá-la initerruptamente. Pois, do contrário, estaria criando uma mentira, fixando apenas um recorte de tempo/espaço que é, essencialmente, um fluxo contínuo.

No final das contas, podemos perguntar: será que a fotografia reforça (ou reforçou) essa concepção cultural, social, psicológica da existência de um “eu” identificável e estável?

Bom, agora vou tentar voltar para a terra! :smiley:

Não existe resposta, e a resposta não interessa.
Ainda bem que não existe resposta, ora essa!

Pois se existisse, se o mundo desencantado em causas,
se o mundo dissecado em fórmulas
nos fosse oferecido
contido
finito

Seria frio
e vazio.


Tantas palavras só podem ser respondidas brincando de fazer rimas…

Na verdade, ou fotografamos o mundo com amor, ou nada vale.

E nós somos o que a cultura nos fez ser, somos o que a imagem nos fez ser também, e não podemos nos colocar de fora para olhar, porque ao olharmos já estamos dentro.

Mas é complicado falar em “a cultura”, pois “a cultura” não existe. Existem, sim, muitas culturas e se estamos imersos em uma, somos estrangeiros em várias outras. E a experiência de sermos estrangeiros pode nos ajudar a olhar de fora, ainda que seja fato que, ao olhar de fora, tenhamos que lutar contra a tendência para sermos engolidos para dentro.

Carlos;

São formas de ver. Há muitas culturas, tomando a palavra no sentido de um rol de valores, praticas e convenções de um povo ou de um grupo. mas, por sobre elas, há uma só cultura, a cultura humana, que é a base comum entre essas culturas que as faz amalgamáveis.

Esse substrato cultural único é aquilo que nos separa da animalidade, pois o homem é um animal que, nascendo em um meio cultural formado pelas gerações anteriores de homens, torna-se homem ao assimilar essa cultura. Mas ele pode formar-se homem em diversas culturas, no sentido da palavra que você deu, mas só se formará homem se estiver em uma delas, e não só, isolado de toda cultura e artefato. Porque todas elas são culturas humanas, e são variedades da Cultura Humana, e não insulares, autóctones, autogeradas.

É dessa Cultura Humana que é a base comum de todas que falo. Não confundir isso com costumes.

Então, Ivan. É esse velho e insolúvel paradoxo da unidade/diversidade do ser humano. Acredito que a unidade diz respeito ao fato que você mencionou: o Homem só existe na cultura. Mas as culturas são muitas e, portanto, as possibilidades de constituição do humano são diversas. Penso que “a Cultura Humana como base comum” é um conceito abstrato, vazio do ponto de vista antropológico, sociológico e histórico. Costumes, práticas, valores, artefatos são os elementos que controem uma cultura real, historicamente situada. E o Homem, que só existe quando faz parte de uma cultura, internaliza costumes, práticas, valores, atitudes historicamente situados e não a “Cultura Humana” abstrata.

Hoje vocês estão “inspirados” hein…
É seu aniversário também Carlos, porque eu sei que é o do Ivan. Pronto, a “corneteria de Jesus” já anunciou a novidade do dia. Feliz aniversário Ivan.

Vim aqui mesmo só pra ler o que vocês escreveram, mas vou deixar para responder depois, estou com um pouco de preguiça de pensar. Isso tem acontecido com freqüência. :smiley:
Brinco, agradeço a intervenção de vocês nesse texto, nesse tópico, e prometo pensar nisso tudo com muita atenção. Agradeço ao Carlos que sempre troca “figurinha” comigo (agora a gente troca livros, né Carlos) e areja esses textos/idéias com novas leituras, referências e indagações e ao Ivan que sempre deixa a gente com “a pulga atrás da orelha”.

Bom final de noite pra vocês dois.

Não é meu aniversário não, Kika. Felizmente vai demorar um pouco para somar mais um ano na minha ficha. A suposta inspiração é devida à lei seca: agora tenho que beber em casa! :smiley:

E já que a “corneteria de Jesus” anunciou: Feliz Aniversário, Ivan!

Kika;

Obrigadão pelo parabéns. 55 aninhos, ainda sem ter conseguido amadurecer -risos. Dizem que homem não amadurece, só envelhece.

Carlos e Kika;

Vamos às questões…

Começando pelo contrário…

Todo homem, seguindo a idéia darwinista, é descendente de um único indivíduo. As mutações não ocorrem paralelamente, mas uma única vez e se propagam na descendência.

No caso do homem, além dessa tese darwinista temos a teoria baseada no DNA mitocondrial que precisa tal tronco humano cuja genética é a do Homo Sapiens em um indivíduo de sexo feminino, a Eva Mitocondrial, que teria vivido na África há cerca de 100.000 anos atrás, e há igualmente estudos da propagação deste homem a partir deste ponto, ocupando o Oriente Médio, a Europa, a Ásia e finalmente as Américas pelo Estreito de Bering. As populações de outras variedades de homens, que havia, extinguiram-se em decorrência desta propagação, sendo questionável o processo dessa extinção.

De todo modo, o Homo Sapiens já nasce como um animal com cultura, visto que as variedades anteriores já faziam uso de instrumentos. Assim, temos o nascimento do homem não a partir de um patamar de pura animalidade, mas de um patamar anterior de cultura, a qual já incluia vida social e linguagem.

Não é crível que entre as gerações se perca a linguagem e a cultura e se a recrie novamente. Entre pais e filhos (ou entre gerações de uma comunidade) a cultura (linguagem incluída) é transmitida, então em todas as gerações durante esses 100.000 anos, transitiu-se aquela organização cultural da Eva Mitocondrial, modificada, mas sempre a partir de uma matriz. O Chomsky através de análise linguística, de análise de certas formas de construir articulação de significados, propõe que há uma base comum a todas as línguas humanas, chamando tal coisa de Gramática Gerativa. Ele atribui isso a uma gramática inata, mas essa conclusão não é necessária, pois o mesmo efeito é causado pela propagação da cultura humana através da propagação da espécie humana, que já nasce aculturada. O Humberto Maturana, aliás, no Da Biologia à Psicologia (que não posso citar o trecho porque os livros estão todos sob a pia da cozinha porque meu escritório foi pintado e não o rearrumei) mostra bam como a cultura e a seleção natural são interativas na produção da espécie humana.

Quando falo de cultura é preciso especificar o que significo. Porque não estou falando da cultura dos povos, da cultura das nações, da cultura das tribos, essas que são específicas e a respeito das quais podemos ser estrangeiros e olharmos de fora suas especificidades. Estou falando do background de todas as culturas, que existe, assim como existe o background de todas as línguas como demonstrado pelo Chomsky (só não concordo com o que ele conclui a partir daí).

Esse backgroud implica em um conjunto de ajustes básicos de conduta. Mais uma vez, vamos tirar essa expressão “ajuste de conduta” do alto nível e vamos baixá-lo para o nível da “linguagem de máquina”. Tal ajuste de conduta, assim como os traços gramaticais que permanecem em todas as línguas, é um conjunto de procedimentos de interpretação do mundo e ajustes motores, assim entendidos o bipedestrismo (que não é inato, pois quando as Crianças Lobo são encontradas geralmente elas não são bípedes totalmente). Não é possível um grau mínimo de cultura, como o da Eva Mitocondrial, sem ajustes de conduta que são motores, perceptivos, perceptivos-motores, simbólicos, linguísticos. Esse conjunto se propaga por todas as culturas a tal ponto que podemos estabelecer pontes de entendimento entre povos, mesmo entre povos que ficaram isolados. Não houvesse esse substrato, não haveria comunicação.

O olhar é também um ajuste. O ver não é um fato, é um ato. Para vermos temos de realizar uma série de ajustes oculares, musculares, e esses ajustes são guiados pela busca de significado. Então, em grande grau, podemos dizer que vemos o que a cultura distingue (significa) e não o que acontece diante de nossos olhos. O olhar é também herdeiro da cultura humana original, e todas as culturas humanas são herdeiras dela, e todas guardam estruturas dessa. Não existe geração espontânea. Há, sim, desenvolvimentos diferenciados que formam as culturas. Podemos ser estrangeiros em relação a outras culturas, mas não podemos ser estrangeiros em relação à cultura humana.

Excelente, Ivan! Ficou muito claro o que você está chamando de “cultura humana”. Só acho que o desenvolvimento dessa “cultura humana”, que é anterior ao surgimento do homo sapiens, está imbricado com a evolução biológica que resultou na espécie humana. O background de todas as culturas não seria, portanto, apenas cultural, mas biológico também. Talvez não seja tão fácil descartar a parte “biológica” do raciocínio do Chomsky. De uma forma ou de outra, nesse aspecto, não é mesmo possível ser estrangeiro.

No entanto, ainda que não seja possível sermos estrangeiros em relação à Cultura Humana, podemos, pelo menos, “simular”* essa condição e, assim, adquirimos alguma consciência (por menor que seja) desses “conjuntos de ajustes básicos de conduta” aos quais estamos presos. Acredito que uma das coisas que diferenciam os humanos dos outros animais é essa capacidade de ter alguma compreensão sobre a sua própria condição.

  • Os livros do Oliver Sacks, por exemplo, permitem um certo vislumbre dessas “simulações” possíveis quando ele narra as histórias de pessoas que tiveram algum problema neurológico grave que as colocou numa condição parecida com a do estrageiro.
Excelente, Ivan! Ficou muito claro o que você está chamando de "cultura humana"

Você está sendo gentil porque é meu aniversário -risos…

Talvez não seja tão fácil descartar a parte "biológica" do raciocínio do Chomsky.

Nada surge do nada, então mesmo a linguagem ha de ter surgido do dominio das possibilidades da interação entre o organismo isolado, o grupo animal e o ambiente. Essencialmente a conclusão do Chomsky não pode ser refutada, mas igualmente não resta provada pelo argumento dele, visto que o mesmo efeito pode ter explicação causal mais simples - e assim preferível, pela Navalha de Ocan

No entanto, ainda que não seja possível sermos estrangeiros em relação à Cultura Humana, podemos, pelo menos, "simular"* essa condição e, assim, adquirimos alguma consciência (por menor que seja) desses "conjuntos de ajustes básicos de conduta" aos quais estamos presos. Acredito que uma das coisas que diferenciam os humanos dos outros animais é essa capacidade de ter alguma compreensão sobre a sua própria condição.

Concordo com você. Há um “ser estrangeiro” provocado pelo acidente, incapacidades, lesões neuronais, etc. E há os cãmbios de ajuste perceptivo, que ao aocrrerem criam uma situação na qual a natureza desse cãmbio se torna mais distinguível.

Mas, ou muito me engano, o texto original deste posta não era bem sobre este ãngulo.

Também acho que não! :smiley:

Eu (acho) entendi o que ambos queriam dizer, Carlos concentrou-se na cultura enquanto fenômeno histórico-social e Ivan falou em cultura da Humanidade que agrega e articula muitas variantes, a genética, por exemplo.

O problema pra mim está na expressão. Assim como a palavra “imagem” pode apresentar muitos significados e portar sentidos variados, como foi tratado por Duvignaud no início do texto, a expressão “cultura” é tão abrangente e complexa quanto.
“Cultura” não só pode ter vários significados como também é mote para vários estudos, em várias áreas, todos eles com diferenças fundamentais entre si, ainda que existam algumas raízes comuns. De modo muito rasteiro, a cultura pode ser pensada como fenômeno biológico, fenômeno histórico-social ou na articulação dessas instâncias; a cultura restrita à produção artística ou a cultura enquanto manifestação do homem em todas as instâncias da vida, em tempo e espaços determinados ou não; enfim, quando falamos em cultura, o termo tem mesmo que vir acompanhado de uma explicação, como ambos fizeram, pois, sem isso, a expressão perde o sentido. (Se bem que estou aqui me lembrando de uma leitura que fiz recentemente que tinha uma explicação razoável para não ficar explicando esses termos toda vez que eles são usados, vou tentar lembrar)

É interessante observar como um texto abrangente como este de Jean Duvignaud teve apreensões variadas, ou melhor, como cada um se concentrou num tema em particular.
Do Carlos partiu o questionamento acerca da representação do “eu” e de uma possível desconstrução daquilo que pensamos ser uma fotografia posada, logo expressão de certo artificialismo.
Do Ivan que, na articulação do texto com a resposta do Carlos, resgatou a cultura como uma manifestação acumulativa do ser humano, dissociando-a, portanto, da manifestação espontânea, sem a mediação da cultura, nesse sentido que ele desenvolveu acima. Ou seja, endossou aquilo, ou melhor, evidenciou as posições que ele vem tratando há tempos, seja na fotografia ou em qualquer outra atividade humana, a de que não é possível “criar” a partir do nada, da inspiração interior, das manifestações da alma.
A minha, quando guardei o texto, isso deve ter sido por volta de 1998 quando tive acesso a ele, voltou-se para uma questão bem mais simples: a representação do homem comum a partir do advento da fotografia.

Interessante também foi perceber que vocês responderam, de alguma forma e não sei se voluntariamente, às principais questões levantadas pelo autor, ao menos pra mim:

  • “Nosso olho, e por conseqüência nossa vida, não fizeram sua aprendizagem através dessas imagens?”
  • “Ora, quem tem razão em relação a representação de sua própria imagem?”
  • “A partir de que época começou o direto individual da imagem?”

Bem, não estou finalizando a discussão, ela está muito interessante. Só vim aqui mesmo fazer um aparte.

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