Arrumando meu arquivo de impressos encontrei esse artigo que pode interessar. Trata-se de um artigo de poucas linhas, mas que levanta uma reflexão maior sobre a questão da imagem e representação humana.
Um mundo para além da imagem
Jean Duvignaud
A fotografia, a pintura ou o cinema ultrapassam a realidade comum para apresentá-la como uma reveleção transposta
As palavras desgastam-se quando mais são aviltadas: assim ocorre com a palavra “imagem”, que perde o seu sentido, dita em colóquios, discursos mais ou menos científicos, debates, polêmicas. Esquece-se que esta palavra esta carregada de uma história - história dos costumes, das sensibilidades, das crenças - e que questiona essa parte da existência onde a espécie humana pesquisa, encontrar-se ou se perde.
E, talvez, convém fazer um pequeno catálogo, rápido, com os múltiplos usos ou práticas desta imagem, para então podermos ver com um pouco mais de claridade.
De início, o mais simples… A imagem que as nações fazem de si e das outras, e que, seguidamente são tomadas como verdades nos estudos políticos ou nas especulações do mercado. Eis, então, o Francês, com sua boina basca, uma “baguette” de pão nos braços, amante da gastronomia e das brincadeiras libertinas. Ou o Brasileiro sacudindo-se em um perpétuo “samba”, dançado sob coqueiros ensolarados.
Quando e como se formaram esses estereótipos, esses clichês, essas “mitologias” teria dito Roland Barthes. Perniciosa ainda é esta influência, quando se apoderam das mentalidades de uma Europa que prepara a sua unificação, e mais ainda quando levantam muros de racismo entre as diferentes culturas.
Vem em seguida as imagens que fazemos dos outros: aqui, elas dependem do lugar que nós ocupamos na hierarquia social, o papel que desempenhamos na “encenação da vida cotidiana”, e, às vezes, os fantasmas de nossas relações íntimas. Estas associadas ao pensamento freudiano: os costumes reais são encobertos de tudo que conduz nossa aventura psicológica pessoal.
Uma ocasião de dilaceramento, por vezes, dolorosa, pois que se misturam as fantasias do inconsciente e a dura realidade. Nós procuramos responder ao “olhar dos outros”, quando nós pressentimos como nós não nos parecemos ao que se espera de nós, o casal infernal descrito por Jean-Paul Sartre.
Temos, ainda, as imagens da representação fictiva: aquelas da religião, da arte. Elas estão lá, inscritas na cerâmica, na pedra, no papel, na madeira, na tela: elas designam Deus, os deuses, as cenas da vida, os rituais de iniciação, as festas, as batalhas, as caças, a paisagem.
São as figurações budistas na Ásia, os afrescos de Ajanta, na Índia, os mosaicos de Bizâncio, a estaturária helênica, egípcia, cristã: a arte de pintar e a representação das cerimônias sagradas ou profanas da tradição italiana, flamenga, alemã, francesa. O que são essas imagens para nós e o que somos para elas? Nós vivemos no “museu imaginário” com estampas, iluminuras, os traços sobre o vidro até as iluminações fulgurantes que se dizem abstratas de Mach ou de Klee. Nosso olho, e por conseqüência nossa vida, não fizeram sua aprendizagem através dessas imagens?
Enfim, porque a tecnologia as suscitou, temos as imagens de reprodução industrial, tal como falava Walter Benjamim: fotografia, cinema, televisão povoam a existência com uma nebulosa insistente. Eis, então, um mundo que superpõe-se ao mundo. Diria-se duas esferas, cujos movimentos diferem - aqueles do terra-a-terra e da duração sensível, privada, do caleidoscópio dos acontecimentos que, até agora, nos eram desconhecidos. Eis que somos os contemporâneos da existência planetária, tal como se percebe nas ficções que se exprimem por verossímeis ou as visões arranjadas ou cheia de truques que passam por verdadeiras. Sim, mas o que tudo isto tem a ver com a imagem?
A imagem é uma banal cópia? A imagem é inocente? Há a alguns anos, Sartre lembrava que toda imagem era um projeto, que visava um sentido além dela mesma e de sua materialidade. O homem é, sem dúvida, a única espécie que representa a si mesma e que representa os animais de seu ambiente e, sobretudo, dá forma ao invisível.
Em nenhum lugar, a sociedade se reduz a sua única representação, ainda menos aos limites que sofre. “A vida, dizia o jovem Lukacs, é uma anarquia do claro e escuro: nada nela se completa totalmente e jamais alguma coisa chega ao seu termo”. E, justamente, porque "nunca alguma coisa é vivida totalmente e perfeitamente até o fim, mais ou menos desajeitadamente, mais ou menos genialmente, os homens tentam, parece, acabar esse mundo inacabado por uma forma, uma forma visível que os justifica existir.
A imagem é esta forma, cujo processo ultrapassa o simples fato de ser: a abela constrói uma colméia, onde ela se aloja, e mesma coisa, a formiga faz o seu habitat que sobrevive as gerações presentes. O homem faz de si mesmo imagens múltiplas, diferentes que não são um asilo, mas respondem a uma tarefa infinita, incansávelmente renovável.
A imagem é mais que a imagem: ela projeta o ser para além do que ele é. Compreende-se que a representação das formas humanas foram objeto de forte debate, que os místicos chegaram a uma discussão do homem com um Deus absoluto, invisível, fora de toda conotação material. Basta lembrar que no fim do primeiro milênio europeu, uma imperatriz de Bizâncio, Irene, convocou um concílio, em Nicéia, com a finalidade de decidir se podia ou não representar a figuração de Deus? Que os monges dos conventos mediterrâneos, cuja única fortuna vinha da representação das imagens santas tiveram um papel importante nesse debate e no seu resultado, sem o qual, provavelmente, a arte de pintar e de esculpir não teriam emergido na Europa.
Não convém distinguir entre a adoração ao ser absoluto, sem intercessor, e a veneração que poderia suscitar a imagem de Cristo, deambulando, nas colinas, que foram aquelas pintadas em Siena, Florença, por meio de artistas com Fra Angelico, Giotto? Além disso, a China budista sugeria os metamorfoses do mundo através de rolos que lançavam ao olhar do amador, as florestas, a rios e seus habitantes?
Mas a imagem é também essa incitação que sugere a escritura ou a narrativa: com os seus meios próprios, a relação de fatos ou de eventos inventa a imagem com palavras. Não palavras que se lê, silenciosamente, em um gabinete, mas de palavras e frases, enunciadas por algum clérigo ou baladino - aventuras de Aquiles, de Ulisses ou de Simbad.
O ouvido engendraria imagens comparáveis aquelas da vista? O que nos vem pelos sons não estaria carregado demais de emoção do que nós descobrimos pelo plano fixo da figuração desenhada, esculpida ou pintada? Os gregos, mas também os chineses, os japoneses, os coreanos, aliaram o som e a vista por meio teatro.
Teatro em grego significa o que faz ver. Fazer ver os pesados manequins de atores mascarados e fantasiados que salmodiavam um texto. De onde vem o sentido? Do lento movimento dos personagens em cena ou do que eles diziam e o que se escutava?
Isto não quer dizer que o que nós vemos em imagem imóvel não tem o mesmo sentido que a imagem acompanhada de som e palavra? A imagem só chama todos os fantasmas e a voz que fala reestabelece uma verossimilhança, por vezes, enganadora. O que é, então, a representação plástica que não fala? Não foi assim que a pintura tornou-se “cosi mentale”, uma linguagem do espírito? E o que é a imagem de “si”, que constrói o que se chama o “eu”, a pessoa?
Com uma grande perspicácia, Lacan pensava que a criança descobria a sua identidade rindo, quando se via em um espelho. Os braços, as pernas, os olhos tomavam a forma de uma súbida iluminação. Sim, mas o que se passa nas sociedades que não dispõem de espelho? Um espelho de metal batido, essas figurações vagas, antes da invenção, em Veneza, desta camada de mercúrio e de areia, que nós dá um reflexo da vida, por vezes, mais intenso e analítico que nosso olhar.
Não é de admirar esta conjugação de magia e espelho acabou por ser uma das únicas que restitui uma inquieta imagem do duplo. J. P. Vernant nota que, na Grécia antiga, ela foi reservada para o uso dos deuses. Na Ásia, tanto quanto no Oriente ou na Europa, o esboço do dublo, por sua vez, fascina e aterroriza, como o pássaro de Minerva, a coruja.
continua…